Eu levo á sepultura, uns após outros,
A donzella gentil, o velho infermo
E o mancebo que folga descansado
Á sombra da ventura.
...
« Minha filha, mais depressa,
Mais depressa um pouco andemos,
E da aurora que desponta
Saudável frescor gozemos!
«Senta-me em baixo do chorão, que dobra
A verde rama sobre a campa núa
De um ser de peito bom, de rosto bello,
Que foi minha mulher, que foi mãi tua!
« O sol, nascendo apenas, vem primeiro
Seus raios nessa campa dardejar,
E á cansada velhice é bem fagueiro
Esses restos da vida desfructar.»
Um cego e triste velho que tremia
A força dos invernos que passarão,
Afilhanova e bella, assim dizia,
Afilhaque os amores cubiçarão.
E tinha o velho pae nos hombros delia
A mão crestada e morta e já rugosa,
E ella ao pae, sollicita, extremosa,
Guiava como um anjo e alva e bella.
« Nem sempre o que ora vês teu pae tem sido,
Oh filha da minha alma, oh meu thesouro,
Também um tempo foi que, entretecido,
Tive o fio vital de seda e d'oiro!
« Também meus olhos se expraiarão longe,
Pela vasta extensão destas campinas;
Também segui a tortuosa veia
Desta linda corrente que se perde
Além, por entre penhas ;
li a esmeraldina cor, de que se arreta
A relva destes prados, destas brenhas,
Meus olhos juvenis encheu de gozo,
Que agora os olhos teus também recreia!
« E que prazer tão grande! o sol nascia
N'um mar de luz brilhante!
Levantava-se mais, brilhava, ardia,
No prado verdejante,
Na fonte e na devesa;
E o munda e a natureza
De puro amor enchia!
Destoucavão-se os montes de neblina,
Que meiga e adelgaçada
Pendia como um véo de gaza fina
Da celeste morada,
Quando num mar formoso o sol nascia!
« O mundo era então luz — hoje é só trevas !
O céo de puro azul via tingido,
Via a terra de cores adornada,
E na immensa extensão d'agua salgada
Via a esteira de luz do sol lusido !
« Breve as horas passei de ser ditoso
Aqui neste lugar, ledo escutando
Tão amável tua mãi, tão carinhosa,
Q'instantes curtos me teceu faltando !
«Hoje existo somente porque existes,
Desfructo outro viver que não vivia,
Quando escutáo tua voz os meus ouvidos,
Como sons de celeste melodia.
« Oh falia, falia sempre.—É doce ao velho
Sons d'argentina voz, que as fibras todas
Do frio coração remoça e abala,
Como d'uma harpa antiga
As deslembradas cordas,
Que a mão experta e amiga
Do trovador, n'um canto alegre estala.
« É doce ao solitário a voz de um anjo
Na sua solidão;
E ao velho pai a voz da casta filha,
Que falla ao coração.
« É doce, qual perfume matutino,
Que a flor exhala,
Que pelo peito da mulher amante
S'interna e cala ;
« É doce, como a luz que se derrama
Pela face do mar,
Quando brando luar, da noite amigo,
Vem nella se espelhar.
« Falla, bem sei que amarga é tua vida,
Que amargo é teu penar;
No silencio da noite lenho ouvido
Teu peito a soluçar!
« Falia, tu bem vês que se a tormenta
Tetrica voa,
Ao ninho de seus paes o passarinho
Rápido voa. »
—Oh meu pai, como eu quizera
Meus pezares te esconder,
Mas tua filha, coitada,
Em breve tem de morrer !
— Sinto que o alento me falta,
Que longe foge de mim;
Sinto minha alma rasgar-se
Por te deixar só assim;
Meu bom pai, como está breve
Da tua filha o triste fim !
— Alta noite, ouvi, em sonhos,
A chamar-me um serafim;
Tinha alegria no rosto,
Mas chorava sobre mim;
Meu bom pai, como está breve
Da tua filha o triste fim !
— E tu cá ficas sosinho,
E tu cá ficas sem mim !
Oh que n'alma só me pesa
Por te deixar só assim;
Meu bom pai, que é já chegado
Da tua filha o triste fim !—
E o velho, baixo fallando,
Tristemente assim dizia:
« Já fui feliz, já fui novo,
Já fui cheio de alegria !
« Eu tive paes extremosos,
Irmãos que m'idolatrarão,
Eu tive castos amores,
Que antes de mim se acabarão
« Eu tive tantos no mundo
Quantos se pôde chorar;
Perdi todos, tudo; ai, triste,
Só eu não pude acabar!
«Ao sopro da desventura
Só eu me não abalei,
Que a todos—novos e velhos—
A campa todos levei!
«Minha filha me restava !
Eu já fantasma impotente,
Sobre os torrões tropeçava
Da cova aberta recente !
«Anjo de amor e bondade
Porque me deixaste assim!
Tu morta, e na sepultura
Que eu tinha aberto pr'a mim!
«Deos, Senhor, quanto foi longo
O vaso em que fel traguei,
Findo o julguei; restão feses,
As feses esgotarei. »
E sobre a rosea face, ora amarella,
A aurora sempre bella radiava,
E o pai, ancião, que a dor rasgava,
Cingia ao corpo seu o corpo delia.
Nem pranto nos seus olhos borbulhava,
E nem nos lábios seus a dor gemia,
E sua alma, qual vaso em calmaria,
Entre vida e morrer immota arfava!
O beijo paternal, por fim, lhe estampa
Na filha, que prazeres só lhe dera;
E filha e pensamento—alguém dissera
Ter juntos sepultado a mesma campa!
Nos céos não tens, Senhor, bastantes anjos,
Por que os venhas assim buscar á terra ?
Brilhe a virtude, quando reina o crime,
O crime impune e vil, que ás tontas erra.