14. Surrexit ilaque Abraham mane, et tollens panem et utrem aquae, imposuit scapula; ejus, tradiditque puerum, et demisit eam. Quse cum abiisset, errabat in solitudine Bersabée.
15. Cumque consurnpta esset aqua in utre, abjccit puerum subter unam arborum, quee ibi erant.
26. Et abiit, seditque e regione procul quantum potest arcus jacere: dixit enim:non videbo moricnlcm puerum : et scdens contra, levavit vocem suam et flevit.
Gênesis, Cap. 21.
Pallido o rosto e queimado
Pelo sol do Egypto ardente,
Sahia a escrava innocenle
Co o filho innocente ao lado
Da tenda patriarchal.
A pobresinha chorava!
Alguns pães e um frasco d'agua
E um peito cheio de magoa !...
Vê, contempla, oh triste escrava,
Teo sepulchro no areal.
Abrahão se compadece;
Mas debalde o sollicita
Piedade sancta,—de afflicta
Sem queixar-se, lhe obedece
A triste escrava do amor,
Quizera talvez detel-a...
Porém que?—Sarai lh'implora,
Deos lhe ordena:—vai-te embora,
Vai-te escrava; e a tua estrella
Te depare outro senhor.
O sol brilhante nascia
Sobre as tendas alvejantes,
E n'outros pontos distantes
Combros d'areia feria,
Outr'ora leito d'um mar;
Esse caminho procura,
Que nas ondas do deserto
Talvez ache por acerto
Pátria, abrigo, amor, ventura
A prole infausta d'Hagar.
Vai, caminha; mas ao passo
Que no deserto s'entranha,
Arde o sol com fúria estranha,
Racha a areia o pé descalço,
Cresta o vento os lábios seos;
E ao lado o filho innocente
Soltava tristes gemidos,
Co'os olhos humedecidos
Fitando a mãi ternamente,
Que os olhos tinha nos céos!
Procura terras do Egypto;
Porém debalde as procura:
Vai a triste, sem ventura,
Lento o passo, o rosto afflicto,
Pela inculta Bersabé.
Seo Ismael desfalece ;
No deserto immenso, adusto,
Não encherga um só arbusto:
Jeovah delles s'esquece!
Cresce a dôr, e mingua a fé.
Pede sombra o triste infante:
Não ha sombra,—água supplíca;
Exhaurido o vaso fica,
Pede mais d'instante a instante...
Pobre escrava, oh! quanto dó!
Podesses rasgar as veias,
Tornar águas innocentes
Tuas lagrimas ardentes;
Mas só vês d'um lado areias,
D'outro lado areias só.
Pois não ha quem o proteja,
Diz a escrava lá comsigo,
Vendo o fado seu imigo,
Meu filho morrer não veja,
Bem qu'eu tenha de morrer.
A um tiro d'arco distante
Se arrasta com lento passo,
Tomba o corpo infermo e lasso,
E amargo pranto abundante
Deixa dos olhos correr.
Deos porém ouvia a prece
Da escrava, da mãi coitada,
E da celeste morada
Librado um archanjo desce
Nas azas da compaixão.
Expira em torno ar de vida,
Um aroma deleitoso,
E num sonho aventuroso
Hagar seus males olvida,
Olvida a sua afílicção.
Dorme e sonha, oh! triste escrava,
Deos senhor sobre ti vela!
Dorme e sonha:—a tua estrella
Nasce como um romper d'alva
Sobre os netos dlsmael.
Esquece a sorte mesquinha,
Que te vexa,—esquece tudo ;
Deos senhor é leu escudo,
Já não és serva, és rainha
D'outro reino d'Israel.
Como quando elevados nas alturas
Descobrimos incógnitas paisagens,
Densas florestas, áridas planuras
E de rios caudaes virentes margens;
Assim da vida o sonho te arrebata,
Rasgando o veo do tempo e do infinito,
E uma scena vistosa te retrata,
Que vai da Arábia ao portentoso Egypto.
Vê como o filho teu, feroz guerreiro,
Nos prainos do deserto eleva as tendas,
E, posto a seus irmãos sempre fronteiro,
Provoca e trama asperrimas contendas.
São doze os filhos—doze reis potentes—
Com elles Ismael tudo avassalla;
É sua espada a lei das outras gentes,
Seus decretos os campos da batalha.
A sorte seus desígnios favoneia,
Segue seus passos a benção divina,
Povôa-se Faran, surge d'areia
De Meca o templo, os paços de Medina.
Crescem, dominão: largo reino ingente
Mesquinha habitação presta a seus netos,
Convertida em nação a grei potente,
Que opprime a cerviz mobil dos desertos.
Mas entre os filhos seus de nomeada,
Sup'rior dos heroes á grande altura,
Na sinistra o alkorão, na dextra a espada,
A effigie torva de Mahomet fulgura.
Curva-se a Arábia entanto, a Palestina
Á sua lei, da Pérsia o reino antigo;
Escutào Ásia e África a doutrina
Do embusteiro que em Meca achou jazigo :
Mensageiro divino se declara
Aquelle que illudido o mundo adora;
Hagar é mãi,—pela vergontea cara,
Entre orgulhosa e triste, a Deos implora.
Peccou; porém da gloria que o circunda
A roxa luz, que o meteoro imita,
De viva resplendor a fronte inunda,
Commove o peito a misera proscripta.
Curvado ao jugo seu todo o oriente,
Ainda a Europa inveja o Ismaelita ;
E em frente á cruz, o pallido crescente
Apparece na grimpa da mesquita.
Oh! quanto humano sangue derramado!
Que de prantos e lagrimas vertidas!
Entre irmãos o combate é porfiado,
A raiva intensa, as lutas mal feridas.
De avistar esse quadro tão medonho,
Embora no porvir todo escondido,
A escrava tenta orar; porém no sonho
Resume a prece em languido gemido.
Geme de vêr em fúria carniceira
A espoza de Mahomet desrespeitada,
E do seu genro a dynastia inteira
Por duro asar de guerra contrastada.
Succedem-se os Omiades valentes;
Do seu ultimo rei, oh dôr! se coalha
O sangue na mesquita: entre essas gentes
Vinga o punhal a sorte da batalha.
O vencedor então, não poucas vezes,
Chegando á bocca a taça corrompida,
Exp'rimenta os tristíssimos revezes,
De quem sobre os tropheos exhala a vida!
Tudo é silencio e luto :—um só evita
O negro olvido,—ao templo da memória
Voa Al-Reschid,—unindo á gloria avíta
O louro da sciencia e o da victoria.
Com seu visir a noite pelas ruas
Escuta dos estranhos mercadores
A gloria d'outros reis menor que as suas,
E expreita do seu povo as agras dores!
Se ouviu a narração d'uma desgraça,
Se o pobre vê curvado a prepotência,
Se o convidão a entrar, quando elle passa,
No abrigo do infortúnio e da innocencia,
Entrou e viu! mas o fulgor crastino
Ri-se mais brando aos peitos soffredores;
Passa o rei, como orvalho crystalino,
E, por onde passou, rescendem flores.
Mudado o sonho a fugitiva escrava
Estranhos povos nota, estranhas terras,
Que o Darro ensopa e o Guadalete lava,
Nadando em sangue de cruentas guerras.
Quem foi que as altas portas
Abriu d'Hespanha aos mouros;
Que poz os verdes louros,
Dos reis godos conquista,
As plantas do infiel ?
De tantos males causa
Tu foste, oh rei Rodrigo,
Tornando infesto, imigo,
O nobre conde, oulr'ora
Vassallo teo fiel.
Debalde o affecto encobres
Do refalsado peito,
Se vais furtivo ao leito
Da virgem, que se mostra
Rebelde ao teo amor :
Qu'es godo e rei fcsqucces!
E o nobre resentido
Da offensa que ha soffrido
No teu exemplo aprende
A ser também traidor.
Em quanto pois devassas
Com torpes pensamento;,
Os regios aposento
Da nobre moça,—a c'roa
Te cae da fronte ao chão;
E o pai, que a affronta punge,
Turbado, ardendo em ira,
Aos pés do mouro a atira.
Que o rei, que planta o crime,
Recolhe vil traição.
Sus, oh rei, ás armas!
Empunha a larga espada,
E a fronte sombreada
Co'o negro elmo—deixa
Tingir-se em nobre pó:
D'encontro as alas densas
Do bárbaro inimigo
Debalde, oh! rei Rodrigo,
Te arrojas!—vence á força,
Foges vencido e só!
Vai só; mas occultando
No manto d'um soldado
O rosto demudado,
Emquanto passa o campo,
Escasso leito aos seos:
Ai! triste rei cahido!
Na solitária ermida,
Que abriga a inútil vida,
No pó collada a fronte,
Lembra-te emfim de Deos.
Lembrem-te os muitos erros
E o crime grave, emquanto
As mais godas em pranlo
O nome teu maldizem,
E ao ceo clamando estão.
Emquanto pela Ibéria
O árabe audaz e forte,
Espalha o susto, a morte,
Por onde quer que solta
Ao vento o seu pendão.
Passão avante, calção
Dos Pyrenêos as serras,
Levando cruas guerras
Ao dilatado império
Do intrépido gaulez.
Debalde o grande Carlos
Oppõe-se-lhes,—que a historia
Nos traz inda á memória
Dos tristes Roncesvalles
O misero revez.
Porém do largo império
De Cordova e Granada
A c'roa cahe pesada
Na fronte amollecida
Do moço Boabdil.
O fraco teme os échos
Ouvir da accesa guerra,
E perde a nobre terra
Ganhada em mil batalhas
Com pranto feminil.
Depois inda outros quadros
Enxerga no futuro;
Mas é um ponto escuro,
São formas vagas, postas
Em duvidosa luz.
Já naves são, já hostes,
Tropel de varia gente,
Que parte do occidente,
Em cujos peitos brilha
De Christo a roxa cruz.
Hagar emfim acorda!
Sustendo o filho caro
Pelo deserto avaro
S'entranha novamente,
Mais solto o coração.
Parece que já sente
No rosto ao bello infante
A gloria radiante,
Que espera os descendentes
Da forte geração.
E como Deos lhe ha dito,
Seus filhos são guerreiros,
Que a seus irmãos fronteiros
Cruentos prelios movem:
Temidos são; porém
As filhas desses bravos
Da vida seqüestradas
Escravas são coitadas,
Que da materna origem
Recordão-se no Harem.
Vai, caminha, oh triste escrava,
Deos Senhor sobre ti vela;
Vai, caminha: atua estrella
Nasce como um romper d'alva
Sobre os netos d’lsmael.
Esquece a sorte mesquinha
Que te vexa, esquece tudo
Deos Senhor é teu escudo:
—Já não és serva, és rainha
D'outro reino Israel